Diretório Estadual do Rio Grande do Sul

BOTA O RETRATO DO VELHO NO MESMO LUGAR
José Augusto F. Affonso


Flexibilização das leis trabalhistas coloca em xeque o Estado intervencionista de Vargas, com inequívoca vocação social
"Bota o retrato do velho outra vez. Bota no mesmo lugar". Com a marchinha de carnaval composta pela dupla, Haroldo Lobo e Marino Pinto, Getúlio Vargas (1882-1954), ganhou a disputadíssima eleição presidencial de 1950. Foi a consagração de um político pelas massas, mas também o reconhecimento das urnas pelo Estado Social que ele havia construído. O pai dos pobres é o titular da Era Vargas. Hoje, passados 47 anos de sua morte, querem tirar o retrato do velho. No lugar do Estado Social entra um outro que alguns chamam de neoliberal ou coisa parecida, uma vez que não está bem claro na moldura.

A verdade é que a discussão em torno da desregulamentação ou flexibilização das normas trabalhistas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) encerra uma questão maior: colocar em xeque um modelo de Estado intervencionista de inequívoca vocação social, onde não só o trabalho era considerado como um valor fundamental, mas também, o desenvolvimento do país era conduzido de forma efetiva, a favor do povo. Havia um projeto bem claro que começou a ser implantado em 1930, chegou até a década de 50, floresceu plenamente na era JK e ingressou em crise política apenas em 1964, com João Goulart, do PTB.

Estadista de mão cheia, além de hábil político, Vargas percebeu que diante do velho Estado liberal não poderia continuar sendo mero espectador. Não poderia deixar a caravana da História passar. Daí ter modernizado o país.

Mas foi através de instituições asseguradas por normas jurídicas que Vargas se perpetuou. Dentre elas estão a Justiça do Trabalho, o salário mínimo, a aposentadoria, a assistência social que os entendidos chamam de seguridade social estatal. Tais contribuições institucionais assinadas por Getúlio se não fossem boas não estariam até hoje em vigor, inclusive, abraçadas pela liberal Constituição cidadã de 1988. No entanto, com o advento dos discursos modernizadores, globalizados, sempre entremeados de lógica racional-econômica, querem, sem dó, desmontar o que existe de bom do legado da Era Vargas.

Tomando o lugar das leis trabalhistas entra a flexibilização. No espaço da Justiça do Trabalho, como mediadora do conflito entre capital e trabalho, entra a arbitragem privada paga. Ocupando a Previdência Social entram os seguros e fundos de pensão privados. E, para completar, o Estado, a pretexto de ajustes econômicos, se distancia, pelo menos no discurso, da intervenção. O ideário varguista inspirado em John Maynard Keynes (1883-1946), aquele lord inglês, defensor do pleno emprego nem que fosse obtido a preço da construção de pirâmides, passa a ser substituído por rotuladas idéias liberais de economistas globalizados quase anônimos.

Assim, neste momento, a grande pergunta que deve ser feita aos brasileiros é a seguinte: O Estado varguista, ou o legado institucional da Era Vargas, não presta e deve ser jogado todo fora? E, ainda mais, qual é o Estado que deve tomar o lugar do velho Estado Social intervencionista? O modelado por Getúlio Vargas, que ainda se encontra na Constituição de 1988, ou outro modelo qualquer como o asiático, por exemplo – autoritário, onde não existem direitos sócio-trabalhistas, nem democracia.

Portanto, deve-se pensar muito bem quando se vota contra a CLT. Acabar com ela é até bem simples. Basta inserir apenas um artigo, no caso, o novo art. 618, que vai colocar o privado acima do público, ou o acordado acima da lei. O risco é destruir tudo, sem nada de consenso para colocar no lugar.

Enfim, não queremos em termos sociais nem econômicos que o Brasil do século XXI seja uma mistura de China com Paquistão - o Chinquistão. É preferível manter o retrato do velho no mesmo lugar, como dizia a marchinha de 1950, pois o outro nós sequer sabemos de quem é.